Um sábado, como hoje, ainda solteira a viver com os meus avós maternos.
A minha avó ainda no activo passava pelos piores momentos da vida dela, não recebia vencimento há quase 6 meses mas mesmo assim e como trabalhava num colégio, manteve-se fiel e leal aos miúdos. Se falhásse era a eles que sentia faltar. (A sensação hoje é que cresci com todos eles e eles comigo).
O meu avô, que vascilava entre o doce e o insensível, na fase em que ela mais precisava passeava-se pelo insensível e até mesmo o egoísta ... não é uma crítica, somos todos assim. Eu sou assim.
Eu namorava o pai do meu filho, geria a dificuldade do divórcio dos meus pais e ainda, como uma super-heroína qualquer, protegia o meu irmão, 11 anos mais novo, de tudo e todos.
Era um sábado como outro qualquer, e começavam todos pelo mercado norte, onde procurávamos, a minha avó e eu, o melhor peixe e o melhor pão. Depois, mercado sul, onde íamos à carne, aos legumes e aos ovos. Era assim. A menos que procurássemos um peixe qualquer diferente e corríamos os mercados do Chile e de Campo de Ourique também. De autocarro em autocarro. Chovesse ou não. Naquela manhã fazia sol.
Ao sábado era dia também de limpezas e partilhávamos isso as duas. Além de que cada uma lavava a sua roupa à mão, não toda mas alguma. E não que fosse obrigada mas porque adorava fazê-lo. Ainda hoje gosto.
Depois do almoço, o meu avô saiu com um amigo para a quinta deste em Azeitão. Eu esperava o meu namorado para irmos ao Lumiar passear e depois lanchar. A minha avó que estava na casa de banho a lavar alguma roupa saiu e veio à sala dizer-me isto: 'Já posso morrer à vontade, és uma mulher, sabes fazer tudo e o que não sabes a vida vai ensinar-te'. Ela andava deprimida e eu não dei muita atenção a isto. Lembro-me de me vir imediatamente ao pensamento as três coisas que a minha avó dizia que uma mulher deveria saber antes de casar - cuidar da casa, cuidar da roupa e saber matar uma galinha - na verdade esta última nunca aprendi, vi fazer e se for necessário sei que consigo mas nunca o fiz, nem com ela e nem por minha conta.
Eu saí com o meu namorado e quando me sentava no café para lanchar senti um aperto no peito ... pedi ao N. que me levásse a casa. Tinha lá um papel escrito num português perfeito (a minha avó aprendeu a escrever e a ler sózinha já depois de eu ser uma adolescente e orgulhava-me disso): 'Não preciso do teu dinheiro, faz dele o que quiseres agora'.
Voámos para o Campo Pequeno direitos ao Colégio. Tudo fechado. Senti que devia subir à janela e empurrar as portadas para dentro e fi-lo. Olhei para o chão e vi a minha avó deitada, quente ainda, meti-lhe os meus dedos pela boca, fiz pressão no peito e entretanto já o N. corria ao café para ligar ao 112.
Entrei em pânico, tremia tanto que não conseguia chorar, só gritar por ela e pedir-lhe que não me deixásse.
Deixou.
Não haviam telemóveis e enquanto o N esperava a ambulância eu corri a apanhar um taxi para me dirigir ao café do meu pai para lhe comunicar que a minha avó estava deitada no chão do Colégio e não sabia se estava morta. Começou a chover enquanto procurava um taxi e só no taxi desmanchei-me a chorar. Valeu-me a compreensão do taxista que me acompanhou depois ao meu pai e de volta ao Colégio.
Quando chegámos ao Colégio tive o maior choque da minha vida ... a minha avó estava a ser fechada num saco de plástico preto. Sentia-me perdida mais do que triste ou qualquer outra coisa, perdida e só.
Sentia que tinha perdido o meu colo e o meu anjo na terra.
Fui atrás da carrinha azul escura da polícia até á morgue e esperei á porta que me dissessem o que esperava ouvir: 'foi morte natural minha querida, se não fosse a tua avó teria a lingua roxa'. Fiquei-me mas não me convenci. Hoje ainda não me convenci.
Hoje sei que naquele dia perdi o conforto e o calor dos braços e dos mimos dela mas continuo a sentir o amor e o olhar protector. Sei que está comigo sempre.
Nunca tinha escrito sobre a morte da minha avó, partilhei muito poucas vezes este momento. Hoje ainda não consigo olhar a foto dela. Está guardada. Estão todas. Um dia conseguirei. Há 17 anos atrás perdi uma mãe, uma avó, uma amiga, um anjo. Saudades como daqui ao céu, Avó!
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